quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Mãe, a gente não deveria se acostumar

Mãe,
"a gente se acostuma, mas não devia", foi assim que li um dia e, sempre que penso, tudo me arde. Não é fácil quando olhamos para os costumes da vida e vemos que estamos habituados a muitas coisas que não nos causam agrado. E daí penso nos estraves de ficar adulto. Penso que já escrevi sobre a saúde dos colegas da faculdade. Já falei exaustivamente sobre como o ensino superior me cansa, me fadiga, me rouba o ar. Engraçado como, aí, as questões sociais me gritam. Eu não posso desistir. Sempre afirmei que continuar era resistência, num ambiente que sempre negou espaço aos meus. Não é assim tão desafiador quando a classe média/alta diz que "tudo bem desistir da faculdade", "não é normal", "você não está se sentindo bem, então larga". A nós, não foi dada essa oportunidade de não nos sentirmos adequados. Principalmente quando ocupamos um espaço tão disputado no ambiente acadêmico. Na m-e-d-i-c-i-n-a. Com todas as letras e toda a prepotência que carrega esse curso, essa carreira. E daí nós acabamos por nos acostumar, não é, mãe? Penso em você, anos no mesmo emprego, fazendo declarações de impostos de renda que não chegam ao seu imposto de renda. Penso no meu pai. Anos fazendo compras para um mercado e com tão pouca vontade de continuar. Vocês não puderam não gostar. Mudar de emprego. Mudar de vida. De cidade. A nós, que nascemos pobres nessa sociedade desigual, não foi dada oportunidade de escolha. Precisamos resistir. Precisamos aguentar horas num ônibus para chegar onde precisamos. Precisamos aguentar horas longe de nossa família, de nossos filhos, de nossos sonhos. A nós foi permitido sonhar? O curso superior, de maneira geral, esmaga nossa vontade de aprender, esmaga nossa crença pessoal, esmaga nossa sensibilidade. Eu não sei se sou adulta o suficiente ou se quero em tornar essa adulta suficiente. Tem dias, mãe, que o frio parece muitíssimo maior que o cobertor. É triste a ingratidão de saber que chegamos até aqui a duras penas e que é infinitamente difícil manter nosso lugar. Sem se misturar. Sem confundir. É, mãezinha, a nós foi dada a incansável insistência. A nós foi dada a capacidade de resistir, por mais que nos sufoquem os sonhos. Insistir nos sonhos de uma sociedade melhor, na qual tenhamos um espaço, que possamos comprar o que desejam nos vender e fazer as viagens para lugares que sempre pareceram tão distantes de nós. Mas a gente não deveria se acostumar, mamãe. Não deveríamos nos acostumar a esse mundo que arde tanto. Hoje eu vejo que existem privilégios que doem muito mais que outros. Hoje eu vejo que o privilégio social está até na possibilidade de se deixar doer. De sair. De mudar os planos e começar de novo. Eu achava tão bonito quando via na TV essas pessoas largando os empregos e indo morar no meio do mato, numa vida tranquila e "out". Mas hoje não. Hoje vejo que é só privilégio mesmo. Privilégio pra, inclusive, abrir mão. Não ter responsabilidade, compromisso, morar no sítio comprado quando aqui a gente mais ou menos consegue alugar uma casa sem passar o resto do mês sem dinheiro. É só privilégio, mãe. E hoje só consigo é achar bonita nossa vida mesmo, que enverga mas não quebra, mesmo com todos os ventos contrários.