quarta-feira, 25 de maio de 2011

O quintal é do tamanho do mundo

Para minha amiga de alma, Luiza Schaeffer.

Olhei atenta para o relógio. "Algumas coisas são importantes demais", disse. Juro que não me referia às horas, tampouco ao preço que tinha pagado naquele relógio, muito menos ao vício que tinha em olhar para ele. Coisas como o olhar, pode me entender? Coisas como entender sem dizer, tudo o que se dispensa palavras sempre me soou especial demais - mesmo sendo a amante das palavras que sou.


Pegou seu veleiro e saiu a navegar. O mundo é grande demais, companheiro, grande demais. Às vezes, ao fim do dia, ajoelhava lá mesmo, no chão do barco, para rezar, porque acreditava. E como acreditava. Acreditava que, principalmente em dias assim, quando derramam tinta laranja no céu, Deus está mais perto da gente, Deus fica parte da gente. Quando decidiu comprar um veleiro, não sabia muito bem o que fazer com ele. Só queria tê-lo, pois um dia haveria de precisar. E precisou. Lançou-se ao mar com a roupa do corpo, porque tinha coragem. E como tinha. No veleiro, uma oração e uma frase que tanto gostava e repetia e repetia e repetia " O que tem de ser tem muita força." Decidiu que queria mudar os ares. Mudar os móveis da casa de lugar já não bastava: queria mudanças maiores, queria usar seu veleiro. Arrumou tudo, arrumou pouco. Não levou mala, levou comida tanto quanto precisava. Nada a mais. Ninguém a mais. Chorou um pouquinho, chorou, porque não saber onde se quer chegar nem sempre é fácil ou simples. Mas mesmo assim saiu. Mas mesmo assim cortou os cabelos. Mas, mesmo assim, colocou seu veleiro n'água e foi-se embora. Os dias passaram e ela nem via. A chuva chovia e ela só sentia. Deixa molhar a cara, deixa lavar a alma, deixa levar o que não é bom embora, deixa. O sol sorria enquanto ela... ela queria navegar. Ela queria conhecer novos mundos, outras coisas, outros mares, algo além. Ela só queria, e como queria, e como podia, ela só queria sentir o vento nos cabelos no fim da tarde, porque isso, meu caro, isso é liberdade. O mar, é claro, nem sempre estava em sua calmaria, nem sempre se mostrava bondoso, nem sempre se mostrava amigo. Ela sentia medo, deitava e deixava o vento forte levar seu barco. Às vezes, como eu disse, às vezes chorava. Soluçava baixinho. Mas no outro dia, via que o vento a havia levado para um lugar lindo por demais e ela se sentia feliz, porque era dia, porque o sol nascia para ela, só para ela - visto que ali não havia ninguém além - porque estava viva e, estando viva, há muitas coisas para se ver. Sentia saudade, falava de saudade, gritava alto para o mar: "estou com S-A-U-D-A-D-E-S, pode me ouvir?". Tinha uma irmã. Quando viajou, deixou para sua irmã uma carta. Quero falar da irmã agora, posso? Não era pequenina  no tamanho, mas se sentia miudinha de tudo. Sentava-se à tarde para ver derrubarem tinta laranja no céu, porque gostava. Principalmente em dias assim, principalmente em horas assim, Deus está mais perto da gente, Deus fica parte da gente. Parava na correria que vivia para olhar o céu, porque sabia que, qual fosse o mar que sua irmã estava a navegar, também pararia para olhar. Sentia falta da irmã. Dava um abraço no vazio. Mas rezava. Pedia fortemente para que os ventos fossem bons e, ainda que fortes demais, que o veleiro não virasse. E o veleiro não virou. E jamais viraria. Porque o mundo é grande demais, companheiro, grande demais. "Sorte é isto. Merecer e ter.

domingo, 22 de maio de 2011

Essa saudade eu sei de cor.

Nós nunca sabemos bem do que sentimos falta. Nós nunca sabemos bem o que pode nos fazer falta algum dia. Passamos, então, pela casa sem guardar bem seu cheiro. Pelos corpos sem lembrar bem seu formato. Ouvimos passos que não gravamos os sons. Bebemos coisas que não lembramos o gosto. Ouvimos música que não lembramos do som. Construímos tijolo por tijolo e, de repente e sem entender, precisamos deixar a casa, precisamos mudar os ares, precisamos - e como - crescer. Precisamos chorar um cadinho. Precisamos sofrer miudinho, em silêncio, recitando fórmulas químicas que nem sabemos se, de fato, entendemos. É começar a voar para ver se as asas aguentam. É preciso começar, de alguma forma. Aí nós olhamos para trás e percebemos que estamos longe de tudo o que fomos, da casa que construímos, dos passos corpos cheiros músicas vozes. Aí lembramos do quanto cada tic tac do relógio antigo faz falta na noite silenciosa. O quanto o cheiro de lavanda que a mãe passava na casa toda faz falta, porque cheiramos, cheiramos, cheiramos e é tudo em vão. Só a mente que, enganando-nos, sente. Sente um cheiro que não está mais ali. E aí, aí não dá para suportar muito não, companheiro. Aí os olhos se enchem d'água mesmo, aí as lágrimas são cruéis, caem sem nos pedir permissão. Aí, companheiro, aí dá saudade, sabe? Dá saudade de tudo o que já fomos, dá saudade do colo que já tivemos, do abraço de boa noite que não chega não. Dá saudade de falar as gírias que falávamos. Dá saudade de gritar como gritávamos. De chorar como chorávamos, sem medo de parecer bobo. Mas chega um tempo, caro colega, que a vida se apresenta mesmo assim: um amontoado de saudade de coisas que pensávamos que não nos fariam tanta falta. Sente-se falta do volume da tosse, da leveza ao caminhar. Sente-se falta de cada pedaço dos domingos de tédio. E é justamente nesse tempo que devemos mostrar para o que é que viemos. Limpar as lágrimas e mostrar, para nós mesmos, que nada disso foi em vão. Que nenhuma das lágrimas cruéis caiu se não fosse para trazer alguma mudança. A saudade dói uma bofetada, mas ensina que só.