domingo, 15 de novembro de 2015

Maremoto

Há tempos não escrevo. E teria motivos para fazê-lo:
o mundo anda doido que dói. É cada coisa que somos obrigados a ver, ouvir, sentir... creio que há ainda poucos corações que aguentam o tranco quando aceitam, de fato, olhar para tudo o que tem acontecido. 
os temas que, para mim, são sempre bem-vindos, estão a todo o tempo sendo por aí reivindicados: política, feminismo, esquerda, luta pelas minorias.
tem Eduardo Cunha na presidência da câmara. Sobre isso, não preciso de nenhuma palavra a mais. 
tem tragédias: tem Mariana, a cidadezinha que conheci e gostei, que está soterrada pela lama da irresponsabilidade e descaso. Soterrada também pelo silêncio. Tem Paris, atentados, bombas, vídeos de pessoas correndo desesperadas. Tem solidariedade seletiva. Tem tanta coisa acontecendo que também merece nossas lágrimas. Todos os casos merecem: eles mostram que falhamos. E falhamos feio. A sociedade deslizou, enfim. Mas temos escolhido quais mortos valem mais as nossas lágrimas. 
tem minha semana de provas, tem essa faculdade, tem essa sensação de inquietação, tem essa variação maluca entre sono e agilidade, tem esse desespero que bate no fundo da barriga. 
tem meu amor, que me oferece a paz impossível nesse mundo que tenho vivido, quando quase estou a beira do naufrágio - e isso é sempre. E, sobre esse amor, eu poderia elencar tópicos muitos, que vão desde a minha busca constante por me libertar de todas as amarras do passado até a confusão de não sabermos exatamente a que horas estaremos juntos outra vez. A distância tem dessas. Poderia escrever sobre a ansiedade pelo encontro, a paz do abraço, o vinho esperando por ele. O amor tem dessas. E quem me conhece sabe que, para mim, o amor é território vasto. Vasta inspiração para textos, cartas, choros, declarações, etc. 
Mas não. Há tempos não escrevo. E o que me desperta hoje não é nenhum desses temas. 
O que me faz escrever é meu pai. 
Por motivos incríveis, quase absurdos na minha concepção, eu e meu pai não nos falamos mais. Escrevi essa linha e o olho já marejou. É que eu estava me lembrando de um dia em que fomos de moto até um lugar bem alto. Era tão perto do céu que me assustei. Mas olhei para o lado e ele estava lá. Acho que eu não escolheria estar perto do céu com mais ninguém além dele. Meu pai sempre foi meu ídolo maior da vida: eu me enchia, e ainda me encho, para contar a história dele para todo mundo. A história de vida de um cara esplêndido, íntegro, sábio. Meu pai, sem dúvida, é o cara mais sábio que conheci. Ensinou que eu podia pensar. E como eu pensei. Mas meus pensamentos o desafiaram e, em algum momento, nossa sintonia teve ruído. 
Não importava, eu olhava para ele com os olhos cheios. Ele não gostava muito, mas eu adorava ir encontrá-lo no trabalho. Adorava vê-lo fazendo o que mais gostava. Ele era lindo lá, impressionante como cabia tão bem em um lugar. E falava com as pessoas, e gesticulava, e falava alto. E parecia brigar. Ele sempre parece brigar. Mas como é genuíno parecendo brigar. 
Eu, hoje, não posso ler absolutamente nada falando sobre pais. Não consigo falar o nome dele, falar sobre ele, pensar nele, sem me deixar levar por todas as lágrimas que me inundam. Exige uma maturidade muitíssimo superior à que possuo para afastar os dedos da mão dos dedos da mão da pessoa que mais te segurava. De repente, o chão abre. E tentamos, em vão, manter a compostura. Tentamos, em vão, fingir que a ferida não lateja. Tento, em vão, preocupar-me com as outras questões que me rodeiam e que sempre me foram de tanta importância. Eu falo sobre meus assuntos no vazio. Eu só queria o ouvido dele escutando. A voz dele discordando. Não adianta falar sobre mais nada. Os assuntos estão esgotados. 
E acho que é assim, desabafando, vomitando, sentindo, que abandono a escrita outra vez. As palavras não tem tanta importância assim. As palavras salvam pouco. É preciso mais. É preciso compreender o que um abraço diz. É preciso ir atrás dos tempos perdidos. É preciso reconstruir. 
Quem dera eu soubesse como.