Para minha amiga de alma, Luiza Schaeffer.
Pegou seu veleiro e saiu a navegar. O mundo é grande demais, companheiro, grande demais. Às vezes, ao fim do dia, ajoelhava lá mesmo, no chão do barco, para rezar, porque acreditava. E como acreditava. Acreditava que, principalmente em dias assim, quando derramam tinta laranja no céu, Deus está mais perto da gente, Deus fica parte da gente. Quando decidiu comprar um veleiro, não sabia muito bem o que fazer com ele. Só queria tê-lo, pois um dia haveria de precisar. E precisou. Lançou-se ao mar com a roupa do corpo, porque tinha coragem. E como tinha. No veleiro, uma oração e uma frase que tanto gostava e repetia e repetia e repetia " O que tem de ser tem muita força." Decidiu que queria mudar os ares. Mudar os móveis da casa de lugar já não bastava: queria mudanças maiores, queria usar seu veleiro. Arrumou tudo, arrumou pouco. Não levou mala, levou comida tanto quanto precisava. Nada a mais. Ninguém a mais. Chorou um pouquinho, chorou, porque não saber onde se quer chegar nem sempre é fácil ou simples. Mas mesmo assim saiu. Mas mesmo assim cortou os cabelos. Mas, mesmo assim, colocou seu veleiro n'água e foi-se embora. Os dias passaram e ela nem via. A chuva chovia e ela só sentia. Deixa molhar a cara, deixa lavar a alma, deixa levar o que não é bom embora, deixa. O sol sorria enquanto ela... ela queria navegar. Ela queria conhecer novos mundos, outras coisas, outros mares, algo além. Ela só queria, e como queria, e como podia, ela só queria sentir o vento nos cabelos no fim da tarde, porque isso, meu caro, isso é liberdade. O mar, é claro, nem sempre estava em sua calmaria, nem sempre se mostrava bondoso, nem sempre se mostrava amigo. Ela sentia medo, deitava e deixava o vento forte levar seu barco. Às vezes, como eu disse, às vezes chorava. Soluçava baixinho. Mas no outro dia, via que o vento a havia levado para um lugar lindo por demais e ela se sentia feliz, porque era dia, porque o sol nascia para ela, só para ela - visto que ali não havia ninguém além - porque estava viva e, estando viva, há muitas coisas para se ver. Sentia saudade, falava de saudade, gritava alto para o mar: "estou com S-A-U-D-A-D-E-S, pode me ouvir?". Tinha uma irmã. Quando viajou, deixou para sua irmã uma carta. Quero falar da irmã agora, posso? Não era pequenina no tamanho, mas se sentia miudinha de tudo. Sentava-se à tarde para ver derrubarem tinta laranja no céu, porque gostava. Principalmente em dias assim, principalmente em horas assim, Deus está mais perto da gente, Deus fica parte da gente. Parava na correria que vivia para olhar o céu, porque sabia que, qual fosse o mar que sua irmã estava a navegar, também pararia para olhar. Sentia falta da irmã. Dava um abraço no vazio. Mas rezava. Pedia fortemente para que os ventos fossem bons e, ainda que fortes demais, que o veleiro não virasse. E o veleiro não virou. E jamais viraria. Porque o mundo é grande demais, companheiro, grande demais. "Sorte é isto. Merecer e ter."
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